Boa leitura: em memória de Marcel Lapierre

Marcel Lapierre morreu prematuramente

O Beaujolais do outono de 2010 foi amargo. Marcel Lapierre morreu no dia 11.10, em sua casa de Chênes, Villié-Morgon. Tinha 60 anos. O rótulo branco ornado com elegantes letras negras de suas garrafas de lacre vermelho tinha fama no mundo todo. Em Paris, Bruxelas, Berlim, Tóquio, Nova York ou São Paulo, seu Morgon natural, não filtrado e sem sulfitos, era uma presença mitológica. Como resistir à graça desse vinho de bela intensidade, nariz fresco e puro, finos aromas de framboesa e violeta, taninos macios, boca longa e leve? Como ficar insensível a esse homem?

Marcel Lapierre não era apenas um dos dez maiores vinhateiros franceses de seu tempo. Era um educador, detentor de uma arte preciosa, difícil e rara. Um homem que sabia o que significa fazer. Com Marcel, vinho era muito mais que vinho. Era o riso e a fartura, os belos passeios em Paris e na vinha, a ousadia, os perigos, os recursos. Muito antes de a tendência virar moda, ele havia deixado de lado os inseticidas, os pesticidas, os adubos sintéticos e retomado a lavra do solo para colher uvas cheias de vida, que vinificava do modo mais doce e natural possível, sem aditivos, com a ambição de lutar contra os que se empenham em apagar a memória do gosto.

Além do Morgon, seu Beaujolais Nouveau, produto de uma maceração carbônica de uvas inteiras, fez sua reputação. O esmero com que ele vinificava no Château Cambon tinha uma gourmandise e um frescor que frequentemente se perderam na região de Beaujolais.

A comoção mundial criada com a morte de Marcel Lapierre teve algo de choque. Raramente a morte de um vinhateiro causa tanta tristeza. Isso se deve a sua personalidade excepcional, sua humildade, seu prazer em compartilhar, sua generosidade desinteressada. Os que tiveram a oportunidade de encontrá-lo no Brasil, com seu sobrinho Philippe Pacalet, na degustação em São Paulo em 2008, lembram-se bem.

A bela história que é a vida de Marcel Lapierre será contada por muito tempo no mundo do vinho – porque ele muito batalhou. Esse homem que conviveu com Guy Debord, autor de A Sociedade do Espetáculo, tinha algo de rebelde revolucionário. Em 1973, a morte do pai obrigou-o a assumir o comando do domaine familiar fundado por seu avô Camille. Marcel tinha apenas 23 anos, mas já sonhava com coisas grandiosas. O vinho feito sob os métodos aprendidos no escola agrícola não o satisfazia.

Após andar muito pelos vinhedos franceses, na Borgonha, Alsácia e Champagne, Marcel iria receber de Jules Chauvet a lição que lhe permitiria produzir um Morgon 100% natural. Negociante estabelecido em Chapelle-de-Guinchay, químico e degustador excepcional, Chauvet tinha uma percepção aguda do aroma de vinhos finos e do trabalho dos vinhateiros para que esse aroma se expressasse em todo seu esplendor. Introduzido pelo prestígio de sua reputação, ele havia vendido seu Beaujolais ao Palácio do Eliseu, para o general Charles de Gaulle, que o mandava servir no dia a dia. Antes de conhecer Chauvet, Marcel já tinha uma ideia do vinho que queria. Ao conhecer esse Sócrates do Beaujolais, ele refinou a ideia.

Depois de recomeçar a lavrar suas vinhas, Marcel se empenhou em conseguir um mosto translúcido e puro da Gamay tinta, bem rico em leveduras nativas. Ano após ano, tratou de abandonar todos os produtos que aprendera a usar na escola no fim dos anos 60, quando a moda era a química e os vinhos tecnológicos. Após tatear um pouco, acabou por descobrir o segredo do vinho natural. E fez escola. Durante mais de 20 anos, vinhateiros foram se sucedendo em Villié-Morgon para ouvir de sua boca a lição que ele havia recebido de Jules Chauvet. Marcel Lapierre gostava de receber os jovens, partilhar com eles suas experiências e ouvir suas opiniões. Na França, existem hoje 20, 30, 50, 100 artesãos resistentes às injunções da agroindústria que devem a ele sua arte. Entre eles, seu filho Mathieu, associado ao destino do domaine da família desde 2005, que recebeu do pai muito mais que uma herança: recebeu um estado de espírito.

Sébastien Lapaque é autor de Chez Marcel Lapierre (Ed. de La Table Ronde). A matéria supra foi publicada no caderno Paladar do Estadão de 21.10.2010

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